segunda-feira, 12 de maio de 2014

Recadastramento Humanométrico- Parte 1


Começou com uma coisa que dizem ser típico de brasileiro, mas que na verdade é o cúmulo da displicência. Onde já se viu?!Quase perder o segundo prazo para fazer o tal recadastramento biométrico!Eu disse:quase!

Cheguei ao meio-dia e por quase vinte minutos procurei pelo final da fila. Muitos brasileiros. Muitos displicentes. Quando achei o final, que seria o meu começo, faltava pouco para chegar à porta de entrada. Mas antes do atendimento teria de rodar um quarteirão inteiro numa fila inacreditável. 

Depois de duas horas em pé e sem dar um passinho sequer à frente, os mais próximos já estávamos amigos confidentes; sorrindo para não chorar e doando palavras de apoio para quem pensava em desistir. Tão cedo para este tipo de cogitação...

Papo vai, papo vem...Entramos no batido assunto: relacionamento amoroso. Tínhamos criado uma espécie de consultório sentimental a céu aberto com centenas de ouvidos atenciosos.

Luciana carregava nos documentos, 35 anos bem pesados. Não conheceu os pais e foi criada pelos avós maternos; hoje com 92 e 96 anos. Reconciliou-se com o pai de sua pequena Glória Sofia, de um ano e quatro meses. Não queria para a filha o seu mesmo destino. Mas Luciana enfrenta um drama conjugal. Ela é dona do Bar Birinight Sorvetes (é isso mesmo...Sorvetes). O problema está no companheiro dela. Ele é evangélico e quer que Luciana se desfaça do seu meio de vida e de sua casa para ser “do lar” e viver em função dele e da pequena Glória Sofia. Oh, Glória!É só isso o que ele quer...Pelo o que ela disse, esse casamento de papel passado não vai muito longe. “Ele só compra Danone e leite pra menina quando a gente tá brigado. Nãm!”. Isso já era a Luciana enfezada.

Nessa altura, já estávamos ao lado da escada perto da loja Moral. De repente, um cuspe da cabeça da Luciana. Que a gente olha...uma ABENÇOADA! Dizem que agora é pra chamar assim criança atentada. Era Maria Letícia, de seis anos. Até a gente reclamar, a mãe da criança estava no pé da escada achando lindo a menina cuspir na cabeça dos outros. 

Fiquei observando o comportamento de Maria Letícia. Tem os olhar tão doce e atitudes tão grosseiras. Tudo falta de amor, atenção, proteção. A mãe chamava a garota dos nomes mais impróprios para chamar alguém daquela idade. Me deu um aperto no peito. Lelê estava descalça e com os pés pretos de sujo. A sandália rosa de plástico tinha rasgado. O pai tentava colar com superbonder, mas não deu certo. O senhor tentou também colar o sapato dele. Mais uma vez não certo e ele continuou a caminhada com o sapato abrindo e fechando a boca.  Enquanto isso, a mãe de Maria Letícia externava da forma mais covarde a sofrência de sua vida.

Antes de dobrar a primeira esquina chegaram da minha casa, uma cadeira da Bhrama, um guarda-chuva imenso com as cores do arco-íris e um livro de contos do Machado de Assis. Tinha de ter um parente meu vivendo aquilo tudo comigo.

O tempo foi passando. A fila pouco andava e as coisas acontecendo. Um rapaz danou-se a mostrar vídeos de tragédia para os outros. Fechei logo a cara. Detesto vê-los.  Maria Letícia inticava com um e outro. Luciana saía e voltava. Voltava e saía.

Perto das seis da tarde, não estávamos nem na metade do trajeto. Mas toda hora eu ouvia do José de Nazária que Deus é fiel e que tínhamos de ter fé que tudo daria certo. Ele dizia isso a cada início de desânimo dos chegados. 

Thaís estava na minha frente.Tem 20 anos. É casada e tem uma filha de um ano e três meses. Participou ativamente de todas as pautas e emprestou o celular várias vezes pra eu ligar pra casa. Gente fina.

Naturalmente, a cadeira passou de fundo em fundo. Já éramos uma grande família. Todos nos ajudando e nos preocupando uns com os outros. Sofremos juntos cada desistência depois de tantas horas de fila.
A desistência que mais nos doeu foi a do José, que mora em Nazária. O relógio marcava 8:30 da noite. Faltava apenas um quarteirão e meio para conseguirmos. A fome dava sinais claros de sua presença. Um falava de peixe, outro de pizza,cerveja. E José falou no seu baião de dois com ovo frito que comeria em casa se já não tivesse azedado. Perguntei se não tinha alguém pra guardar na geladeira.  Ele baixou os olhos e disse que não tem geladeira. Tentei brincar para descontraí-lo, mas aquilo me doeu tanto...

Ele foi embora às 9 da noite. Meia hora antes de o TER distribuir as senhas que garantiriam o atendimento no dia seguinte. Foi embora, porque o último ônibus para Nazária estava quase passando na avenida Maranhão, para onde ele foi apesar de termos pedido com tanto afinco para que ficasse. Ele não conhece ninguém de Teresina que pudesse dar abrigo por uma noite. Thaís deu a ele cinco reais para ele pegar um mototáxi quando chegasse em Nazária e evitar de ainda ter que caminhar 3km até sua casa. 

Esta tarde pareceu um ano na Universidade da Vida. Me apeguei a todos. Aprendi muito com cada um.
Cheguei em casa querendo. Querendo. Querendo um abraço que pudesse me guardar de tudo, nem que fosse por segundos. Eu quis.

Um abraço especial para Girlany, Iranda, Elaine, Edilson (Siri) e Jéssica e seu esposo, que também fazem parte desta família.


2 comentários:

  1. E eu aqui lendo e chorando. O que mais me comoveu, foi saber que o josé de Nazária, estava enfrentando uma fila desta, para ter posse de um documento, o qual lhe dá o direito de votar em políticos safado, vagabundos e ladrões, mas não terá com todo este sofrimento o poder de ter uma geladeira. Sinta o meu abraço apimentado, minha Malagueta linda!

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  2. Foi o mesmo que me comoveu,Nininha!!!Te amo!Beijoo!!

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