*Esta é a minha versão sobre o porquê de o povo piauiense ser o mais acolhedor e amigo! :)
Fazia uma noite tranquila quando ela viajou feito fluido sobre todos nós e desceu, juntamente com seu primeiro choro, naquela aldeia de cheiro alavandado onde exalava alegria em apenas tudo: cores, danças, rituais religiosos, contações de histórias, culinária. Logo nas suas horas iniciais, seus pés tão corados e franzinos foram vestidos com um par de meias amarelas, seguindo a tradição de seu povo, que acreditava ser a cor da fartura, da beleza e da prosperidade. Protegiam os pés, sabendo ser por onde passava um oceano de energia. Algo ainda perigoso para um ser tão indefeso.
Seu lugar no mundo, já sabia ela
desde o seu nascimento, era aqui na Terra, mas também lá onde o brilho intenso
e piscante aparecia todas as noites. Bastava o sol se pôr para ela vidrar seus
olhos no céu. Havia entre a indiazinha e as estrelas algo além da admiração.
Era um bem-querer construído dia após dia, por anos. Arrisco dizer, algo a mais
que meio amor. A menina também sentia-se, profundamente, acarinhada por suas
amigas lá do alto.
Enquanto as outras crianças da
aldeia corriam de pé no chão e soltavam gritos brincantes iluminados apenas
pela luz da lua, ela andava por entre todos com a pressa de quem empurra a
areia com as pontas dos pés e o queixo apontando pra cima, assim como seus
olhos puxadinhos e brilhantes. Voltados para o chão, apenas seus pés e as
inseparáveis meias amarelas, apesar de não ser mais um bebê.
Mas quem tá achando que a cunhatã
não brincava? Quê? Se divertia horrores com as estrelas. Seu passatempo
preferido era estender a mão para o alto e correr seus dedos de um lado para o
outro formando caminhos estrelares, como os feitos na areia da praia. Por
vezes, os astros se reuniam em balé apresentando para a pequena ondas de
estrelas, corações que se transformavam em rosas, monumentos históricos até
então desconhecidos por ela. Um espetáculo bem particular.
Certa noite, como de costume,
dormiu conversando com as estrelas, perguntando para elas questões várias.
Queria saber como era fora da aldeia e com quais perigos poderia se deparar, e
ainda se conseguiria vencê-los.
Acontece que, naquela noite, ela
viu em sonho, em uma das danças daquele luzeiro, a formação de um rosto curumim
sorrindo. Despertou atônita e ao abrir
os olhos, para sua surpresa, o céu estava limpo como nunca visto antes.
Criou-se nela um meio pânico. Ficou confusa. Achou que tinha perdido suas
parceiras de toda uma vida. Para onde foram? O que havia de errado?
Saboreava a doçura de seus oito
anos quando os mais velhos de seu clã perceberam na indiazinha o dom da caça.
Era cautelosa e rápida. De andar leve em mata fechada. Tinha força para puxar a
flecha e a paciência para aguardar o momento exato de abrir os dedos e deixar a
lança seguir seu curso. Certeira. Cirúrgica como ninguém. Caçar era uma forma
de ajudar sua tribo e de se preparar para enfrentar os obstáculos longe do seu
lugarejo.
Após o sumiço das estrelas, antes
mesmo de amanhecer, a indiazinha trocou a meia amarela pela vermelha. Para sua
tribo, esta cor representava a Mãe Terra, maior divindade daquele povo. Símbolo
da proteção maior! Pegou suas coisas e seguiu mata adentro em busca de
respostas.
Andou por dias, semanas ladeando
rios e sobrevivendo da caça e de frutas nativas. Não tinha descanso. À noite,
seguia a direção riscada por estrelas cadentes no céu. No caminho, ia deixando
flechas fincadas no chão, marcando o percurso que a levaria de volta à sua
tribo. Passou um ano enfrentando onças, cobras, plantas venenosas, mosquitos,
mas nada de respostas. Já com dez anos, desistiu de procurar por suas
companheiras e também de saber de quem era aquele rosto mostrado em sonho. Optou
por retornar para suas pessoas.
Dois passos depois de sua
decisão, a menina foi se refrescar nas águas do rio. Ela não esperava que
apesar de sua extensa andança por aquelas bandas ainda houvesse mistérios
naquelas águas. E havia. A indiazinha foi sugada por um redemoinho. Rodopiava
cada vez mais para dentro do rio ficando para fora da água apenas seus pés
coloridos pelas meias vermelhas.
Abriu os olhos. Um clarão sem
igual. Era tanta luz, mas tanta luz que ficou difícil identificar do que se
tratava. O brilho foi, então, tomando a forma das estrelas. Estas a envolveram
e abraçaram-na igualmente se faz quando com extrema saudade. A garota ficou muito
feliz e também intrigada. Seria uma ilusão? Estaria ela voltando para seu outro
lar, ao invés daquele para o qual tinha decidido retornar? Continuou girando.
Neste momento, lá de cima, todas
as bilhões de estrelas reuniram-se, deram as mãos e, num ato sui generis, desceram
à Terra para salvar a indiazinha. Ao tocarem o chão, os astros formaram o
contorno de uma meia numa área de mais de 250 mil metros quadrados, tendo no
centro o rio onde estava a pequena. O delineado possuía, com toda luz e
intensidade, as cores mais bonitas que o universo possui. Tinha os tons da
pedra opala, característica daquela região.
Enquanto o luzeiro resplandecia, uma
puxada profunda de ar. A indiazinha havia sido resgatada por um garoto de sua
mesma idade. Ele seguiu o clarão que vinha do rio e a encontrou. Ali estava o
rosto apresentado a ela numa noite estrelada. A garota o reconheceu e o abraçou
forte. Ele nada entendeu, mas também sentiu que dali nasceria uma grande
amizade. E assim foi.
Ela voltou para sua tribo e
contou o ocorrido. Disse que quando estava se afogando viu do alto estrelas que traçavam uma meia gigante e muito cheia de luz e que foi salva por
um garoto que tinha visto no céu. Para seu grupo, parecia tudo muito estranho.
Coisas de gente que ainda estava voltando a si, mas para ela fazia todo
sentido.
A indiazinha e o garoto viraram
os melhores amigos. Tão amigos quanto a indiazinha era das estrelas. E aquela
região contornada pelos astros em formato de meia passou a ter o povo mais
acolhedor, mais amigo e iluminado de todo o planeta. Mesmo muito idosa, a
indiazinha conversava com as estrelas. Se manteve fazendo questionamentos vários; porém
sempre acompanhada por seu amigo, que a salvou, e por seu par de meias
amarelas.